Por Guilherme Rabelo Fernandes

Papéis avulsos foi publicado pela primeira vez em 1882 e é o terceiro livro de contos de Machado de Assis (1839-1908). Trata-se de uma reunião de contos que haviam sido publicados em periódicos como Gazeta de Notícias e A Estação. O exemplar disponibilizado na BBM Digital foi impresso pela Tipografia Lombaerts.

O autor havia publicado antes as coletâneas Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite (1873); assim como os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e os livros de poesia Crisálidas (1864), Falenas (1870) e Americanas (1875).

Papéis avulsos é a primeira amostra da maestria de Machado de Assis na narrativa breve. Essa coletânea e as posteriores - Histórias sem Data (1884), Várias Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899) e Relíquias da Casa Velha (1906) - são a parte mais bem sucedida da obra do autor, segundo a crítica literária Lúcia Miguel Pereira [1]. Ela afirma que as intromissões do autor nos romances concedem uma face ziguezagueante à narrativa, que pode causar tanto o encanto quanto certo aborrecimento no leitor; já nos contos, com suas limitações próprias, o autor se vê obrigado a construir tramas menores, que ganham maior coesão.

É interessante notarmos o breve intervalo - cerca de dois anos - entre a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Papéis avulsos, duas obras transformadoras para a obra do autor e para a literatura brasileira. O crítico literário inglês John Gledson argumenta que Machado atravessava, nesse período, aquela que ficou conhecida como a “crise dos quarenta anos”. O autor teria passado por um “surto criativo” no decorrer dessa crise, onde verificamos intensa experimentação artística. Alguns artifícios que despontaram são o estilo digressivo, o espírito troçador e o uso não convencional dos gêneros [2].

Os contos de Papéis avulsos asseguram os artifícios listados, haja vista para o último. Alguns exemplos são “Teoria do medalhão”, diálogo entre pai e filho em que são apresentadas vias para ser um medalhão, ou seja, usufruir dos louros no fim da vida por meio de medidas como a autopromoção e a adoção da retórica simples; “Na arca” é uma paródia do Gênesis bíblico, inclusive narrada em versículos, em que os filhos de Noé abrem uma disputa sobre a partilha das terras enquanto esperam as águas baixarem; e “A sereníssima república” recebe a forma de texto científico, cuja exposição de um cônego dá detalhes sobre como se instituiu uma organização sociopolítica entre um grupo de aranhas - aqui o autor alude ao processo eleitoral da época, mostrando que mesmo nas narrativas fantásticas não perdia de vista a realidade brasileira.

Dos demais contos que completam a coletânea, “O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana” e “O alienista” são os mais celebrados. “O espelho” inicia-se com uma reunião noturna entre “quatro ou cinco cavalheiros”. A alternância se dá por conta do silêncio de Jacobina, que não se manifesta, pois crê que discussões são inúteis. Instigado pelos demais presentes, Jacobina contraria sua afirmação e relata um episódio crucial de sua vida para provar a teoria indicada no título do conto: não há só uma alma, mas duas; pois há a alma interior que olha de dentro para fora e a alma exterior que olha de fora para dentro.

“O alienista”, por sua vez, é grandioso, tanto em extensão quanto em premissa. É um conto longo cujo protagonista é Simão Bacamarte, médico que retorna para Itaguaí, sua cidade natal. Bacamarte resolve dedicar-se aos estudos científicos, com especial atenção ao “recanto psíquico, o exame da patologia cerebral.” Para isso constrói um manicômio, chamado de Casa Verde, para abrigar os loucos da cidade. Mas em pouco tempo a Casa Verde não parece comportar todos os considerados loucos por Bacamarte, dado o aprofundamento de seus estudos científicos e sua obsessão em entender a loucura humana.

Papéis avulsos destaca-se por ser uma coletânea de narrativas divertidas, visto que a sátira e a acidez de Machado são implacáveis com os personagens e, em última instância, com o leitor. Também salta aos olhos do leitor o tema interessante acerca da linha tênue que separa as ideias opostas, como a razão e a loucura em “O alienista”. E, por fim, dizem muito sobre o Brasil, tanto do século XIX quanto dos dias atuais.

Reproduzimos abaixo a íntegra da Advertência que precede os contos em Papéis avulsos, onde Machado de Assis atenta para as diferenças entre os textos e a qualidade que os uniria:

ADVERTÊNCIA

Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.

Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com S. João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria.” Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.

Deste modo, venha donde vier o reproche*, espero que daí mesmo virá a absolvição.

Machado de Assis

Outubro de 1882

Notas:

[1] PEREIRA, Lúcia Miguel. “O Artista”. In: Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

[2] GLEDSON, John. (2011). Machado de Assis e a crise dos quarenta anos. Machado de Assis em Linha, 4(8), p. 9-28.

Veja também em Seleção BBM Digital: Machado de Assis (1839-1908)


Guilherme Rabelo Fernandes é estagiário da BBM e graduando em Letras pela FFLCH-USP.