Gabriela Pellegrino Soares

Caras e Caros Visitantes,

Esta exposição virtual celebra o Centenário da publicação do livro infantil de A menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato, “lindo álbum colorido onde começam as aventuras dos netos de D. Benta”, com uma cuidadosa apresentação gráfica, volume cartonado tipo álbum de figuras, no formato 29X22 cm, com 43 páginas e pitorescos desenhos de Voltolino.

José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, no estado de São Paulo, em 18 de abril de 1882. Na infância, desenvolveu um vínculo forte com o avô, o Visconde de Tremembé, dono de uma imponente biblioteca pessoal e da fazenda Buquira. O mundo imaginativo do futuro escritor nutriu-se, sempre, das aventuras vividas entre os livros e na fazenda de café.

Perto de completar 18 anos, ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. De maneira geral, passou pelo curso sem grande entusiasmo, mas fez do Café Guarani, nas proximidades do largo, o lugar onde nasceria o Cenáculo – uma seleta e inspiradora agremiação de amigos. O grupo então seguia para o Minarete, como foi batizado o sobrado no bairro do Belenzinho, onde as horas transcorriam sem pressa. De lá saíram os primeiros artigos de jornal cunhados pelos jovens convivas.

Formado bacharel, Lobato retornou ao Vale do Paraíba, onde conheceu e se enamorou de Purezinha. Seguiu se dedicando a colaborações com a imprensa e logo trabalhará para o jornal O Estado de S. Paulo. Pintava, também, belas aquarelas, e tornou-se promotor de Areias. Com a morte do avô visconde, assume a responsabilidade pela fazenda Buquira. A essa altura, estava casado com Purezinha e pai de uma prole que chegaria a quatro.

Purezinha em toilette irrepreensível,
conforme anotou Lobato
em fotografia de sua autoria.
Acervo Iconographia.

Marta, Edgard e Guilherme,
filhos de Lobato, na fazenda.
Acervo Iconographia.

Tia Anastácia e Guilherme,
Fazenda Buquira, 1913.
Acervo Iconographia

Em cartas ao amigo do Cenáculo Godofredo Rangel, registrava a falta que sentia de poder escrever.
Em novembro de 1914, publicou no Estado o artigo “A velha praga”, contrapondo às vozes ufanistas as mazelas do Brasil – muitas delas, mazelas do mundo rural, das práticas agrícolas predatórias e ineficazes, da falta de vigor do homem do campo…

O artigo alcançou enorme repercussão. Logo vieram outros, que ajudaram a recolocar Lobato na trilha dos ofícios voltados às letras. Em 1916, estabelecido novamente em São Paulo, Lobato chocou-se com as esculturas de anõezinhos à alemã que decoravam o Jardim da Luz. Publicou na ocasião um artigo na Revista do Brasil, denunciando o nosso desenraizamento cultural e o hábito brasileiro de imitar o modelo europeu. Em janeiro de 1917 defendeu o mesmo ponto de vista nas páginas de O Estado de S. Paulo, em “A criação do estilo”, onde sugeria que se incorporassem elementos do folclore brasileiro nos cursos de arte. Em lugar dos faunos, sátiros e bacantes de origem europeia, Marabá, caiporas, boitatás… (LOBATO, Monteiro. A criação do estilo. Estado de São Paulo, em 6 de janeiro de 1917.)

O escritor conclamou os artistas da terra a realizar “nosso 7 de setembro estético”, do qual o saci, “satirozinho de grande pitoresco que ainda não penetrou nos domínios da arte, embora já se cristalizasse na alma popular, estilizado ao sabor da imaginativa popular”, serviria como emblema. 

No dia 28 de janeiro de 1917, Lobato lançou no “Estadinho”, edição vespertina de O Estado de S. Paulo, sob o título de Mitologia Brasílica, uma série de artigos em que convidava todos a colaborar com informações sobre aquele duende genuinamente nacional, cuja denominação derivava da corruptela do nome tupi-guarani, Çaa cy perereg

O êxito foi absoluto. Incontáveis depoimentos chegaram de diferentes regiões do Brasil – Minas Gerais, Rio de Janeiro e, especialmente, o interior paulista. O jornal os publicou em partes. Seu conteúdo e sua forma variavam, mas tinham em comum a origem do mito, que emergia de relatos de ex-escravos que trabalhavam em fazendas ou em pequenas propriedades agrícolas. Brejeiro e cheio de artifícios, o saci gostava de praticar diabruras. Disparava cavalos à noite, gorava ninhadas, bebia o vinho dos barris … Em dias de ventania, era possível aprisioná-lo em uma peneira no meio do redemoinho. Com o tempo, o gorro vermelho substituiu os chifres e o rabo foi desaparecendo das representações. Era negro com uma perna só, ou duas pernas com calcanhar voltado para trás, para despistar, com as pegadas invertidas, quem quisesse segui-lo.

No mesmo ano de 1917, o jornal conclamou artistas plásticos a desenvolverem trabalhos inspirados no saci para um concurso. Algumas dessas imagens vieram a compor o livro O saci-pererê: resultado de um inquérito, ilustrado por Voltolino. O lançamento teve lugar em princípios de 1918, em meio às notícias dramáticas que chegavam da Guerra na Europa, como sublinhou Lobato em seu “Introito”. O saci surgia para “com suas travessuras aliviar-nos do pesadelo” e desviar “a nossa atenção para quadro mais ameno que o trucidar dos povos”.

Capa de O Sacy-Pererê.
Resultado de um inquérito. 1918.
Acervo Magno Silveira.

Desenho de Voltolino para propaganda
dos chocolates Falchi,  veiculada em
O Sacy-Pererê. Resultado de um inquérito.
1918.

O olhar para o Brasil profundo também ganhou corpo no trabalho que Lobato realizou, a partir do mesmo ano de 1918, como editor da Revista do Brasil. De editor passou a dono, comprando-a do jornal que a lançara, O Estado de S. Paulo. A gestão de uma revista demandava conhecimento das questões próprias do mercado editorial – a compra de papel, o maquinário para impressão, estratégias de distribuição… Visionário, o escritor, ex-fazendeiro e ex-promotor, fundou sua primeira editora – a Monteiro Lobato & Cia. Foi lá que nasceu Narizinho… seguida de outras histórias que pouco mais tarde povoariam a coleção que marcaria toda uma época, O Sítio do Picapau Amarelo.

No caderno manuscrito que Lobato começou a preencher em 1917 reconhecemos um embrião da história de Narizinho, embora a personagem aqui se chamasse Nenê e o desenrolar da narrativa fosse diferente. Caderno manuscrito, carta e transcrição do caderno feita por Monteiro Lobato para Marina Andrada Procópio de Carvalho, 11/05/1946. Arquivo IEB, USP, Fundo Raul de Andrada e Silva, Dossiê Monteiro Lobato. 

Monteiro Lobato no escritório
da Revista do Brasil, c.1920.
Acervo Iconographia.

O Brasil e a leitura há cerca de cem anos

O Brasil das primeiras décadas do século XX passava por transformações que contribuíram para o florescimento do mercado editorial e da literatura infantil. A população urbana se adensava, embora estivesse longe de ultrapassar a rural. Situadas na próspera e poderosa região Sudeste do país – que em 1920 tinha o dobro da densidade demográfica do Nordeste –, Rio de Janeiro e São Paulo vivenciavam sua Belle Époque. O Rio, cartão postal da jovem República, capital federal até 1960, mereceu reforma urbanística espelhada na de Paris. Em 1906, era a única cidade do país com mais de 500 mil habitantes, crescendo a passos largos com a chegada de grupos sociais egressos da zona rural e de imigrantes.

A imigração contribuiu para mudar a atmosfera da provinciana São Paulo de até meados do XIX. Dinamizada pela cafeicultura, a cidade, em 1872 com 19. 347 habitantes, já reunia 270 mil em 1908, 578 mil em 1920 e praticamente o dobro disso em 1934. Atraídos pelas oportunidades no comércio e na indústria, novos moradores chegavam de outras regiões do país e do mundo, redesenhando a cidade e seu cotidiano. Construções em plurais estilos importados substituíam os antigos casebres e casarões, num “carnaval arquitetônico” que incomodou Monteiro Lobato.

Praça Antonio Prado, centro de São Paulo, década de 1920.
Acervo Iconographia.

Sinais de modernidade, afinados com os tempos republicanos, mas plantados num cenário rico em discrepâncias. A se começar pelo regime político que caracterizou, como se sabe, a chamada Primeira República (1889-1930), que excluiu do direito à cidadania política boa parte da população.

Entretanto, ao longo dos anos 1910 e 1920, na medida em que proliferavam, sobretudo entre os novos setores médios urbanos, as manifestações de insatisfação com a ordem oligárquica, o tema do analfabetismo foi se colocando como questão premente dos projetos de modernização da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, em diversos estados do país, buscaram-se organizar sistemas educacionais públicos, com vistas a universalizar e redefinir os sentidos da escolarização primária. Em 1934, quando a população nacional ultrapassava os 37 milhões de habitantes, havia 30.499 unidades escolares primárias no país, contra 12.448 em 1907. O número de matrículas no ensino primário foi de 2.261.613 em 1934, contra 638.378 em 1907. Em 1940, o índice de analfabetos continuava elevado, embora apresentasse algum progresso com relação a 1920, quando 69,9% dos brasileiros com 15 anos ou mais foram assim qualificados – caíra para 56,2%. Ao mesmo tempo, estima-se que, em 1920, apenas 9% dos meninos e meninas entre cinco e dezenove anos frequentassem uma escola primária ou secundária. Em 1940, conformavam mais de 21% da população dessa faixa etária.

As oportunidades educacionais correspondiam a uma demanda, em particular, dos setores urbanos, que cresciam, nas primeiras décadas do século, na medida em que se diversificavam as possibilidades de trabalho. Conferiam à educação formal um papel importante na formação de seus filhos, fosse por expectativas de ascensão social ou por motivações culturais e políticas. Foram também esses setores o público alvo da atividade editorial que se desenvolveu no país nessa época e que permitiu, paralelamente, a gradual profissionalização de escritores.

Para os jovens brasileiros com gosto pela leitura, as livrarias, nas cidades maiores, os pedidos postais ou empréstimos, representavam o caminho mais usual para se ter acesso aos livros ou, como era mais comum, a alguns poucos livros. A expansão do sistema escolar durante as décadas de 1930 e 1940 foi acompanhada por uma crescente preocupação com a difusão de bibliotecas no país, de modo a promover a circulação de livros por regiões e entre estratos sociais diversos. 

Concebidas como um espaço complementar à atividade escolar, as bibliotecas se pautariam no modelo da “L’Heure Joyeuse’”, criada em Paris após a I Guerra Mundial. Seriam espaços consagrados à leitura, à narração de contos, à exposição de livros e gravuras, rodeados por árvores, singelos e bonitos.