Até o presente momento, em dois anos de história e com quatro edições publicadas, os Boletins omitiram, ocultaram ou olvidaram da colaboração de professoras(es), pesquisadoras(es) e estudantes negras(os). E mesmo nessa edição voltada à negritude, brancos são os únicos indicados, recomendados e mencionados. O racismo, e daí sua perigosíssima configuração, está nas ações cotidianas e passa despercebido, a despeito de suas escancaradas chagas. É um elefante na sala que sentou-se pesado e confortavelmente no colo desse país chamado Brasil. E por falar em elefante, grande trucidante elefante, e pai desse racismo estrutural em voga, foi o regime escravocrata que transformou seres humanos em mão de obra da colônia aos dias de hoje, idosos, crianças, homens e mulheres pretas(os), ninguém escapou de sua pesada estrutura. Corpos pretos cuidando dos engenhos, das fábricas, casas senhoriais, dos apartamentos de luxo, dos sinhozinhos e sinhazinhas, dos filhos e filhas, da colheita, da alimentação e da segurança dos (poucos) habitantes dessa sala. Mas essa história já é figurinha repetida para ativistas pretas.
A Academia Brasileira, entendida como formadora, mantenedora e precursora da ciência, inclusive a aqui formada na Universidade de São Paulo, é reflexo de um antigo e conhecido projeto de exclusão material e intelectual das produções negras. Em âmbito acadêmico, por muitos anos, embranqueceu-se diversas personalidades, a fim de dar-lhes legitimidade, como Machado de Assis, e louvou-se racistas, como Gilberto Freyre e Monteiro Lobato. Vale lembrar aqui o doloroso processo de adesão das cotas raciais nas Universidades públicas, sendo a USP a última das grandes instituições a aderir ao regime de cotas para pretos, pardos e indígenas, apesar de ter sido berço de grandes discussões. Situação conflituosa até hoje.
Na tentativa e ânsia de romper com essas velhas lógicas de (re)produção, esta quinta edição, produzida com a colaboração massivamente preta, discute os Quilombismos do mestre Abdias do Nascimento. Baseado nas primeiras experiências de liberdade pós-dominação colonial nas Américas, propomos um legado de mobilização política com base na sua própria experiência histórica e cultural do povo afro-brasileiro, articulando uma proposta multiétnica e pluricultural para o Brasil.
Para tal, os Quilombismos evocam as figuras de Exu e Ogum. O primeiro é aquele que dinamiza a vida e a luta do povo negro, simboliza o princípio da comunicação e da contradição dialética, é o portador do axé. O segundo, é aquele que executa a Lei, representa a luta e a vitória, desbravador das fronteiras cósmicas, duro e justiceiro.
A edição costura quatro eixos temáticos, mas longe de ter passagens truncadamente demarcadas, o aglutinado de textos e imagens fluem de um ponto ao outro de forma manante e orgânica, tal como uma colcha de retalhos. Vale lembrar que as entrevistadas e entrevistados surgiram por um processo também natural e fluído, não sendo fixadas(os) ou formatadas(os) à priori. Uma linha do tempo perpassa todo o boletim com fatos significativos ocorridos ao longo dos quase quatrocentos anos de escravidão até os dias de hoje, pois como nos ensinou Beatriz Nascimento, a invisibilidade está na raiz da perda da identidade. Para combater o esquecimento e a marginalização é preciso tornar-se visível. Desse modo, os fios da história, do presente e do futuro pulsam vividamente em prontidão, ávidos de serem lidos e transformados através de um processo colaborativo e pujante, tal como esta edição se apresenta.
Desse modo, bordando histórias, o Prof. Dr. Mário Augusto Medeiros da Silva (IFCH/UNICAMP) discute a formação e a potência das Literaturas negras e periféricas. A artista e Profa. Dra. Rosana Paulino, em entrevista, questiona os tensionamentos entre Arte e História. Outras formas de teatralização são tema da conversa com o dramaturgo Prof. Dr. José Fernando Peixoto de Azevedo (ECA/USP).
Alinhavando o segundo eixo, Maria Clara dos Santos Oliveira (ISS/UNIFESP) reflete sobre as contribuições de Frantz Fanon para a saúde mental. Luana Ortiz Silva (FFLCH/USP) aponta a necessidade de se discutir a branquitude. Cláudia Rosalina Adão (FAU/USP) mostra a relação entre cidade, extermínio e segregação urbana e racial. A crônica Entre Negras Pupilas, de Lucas Fernandes (FFLCH/USP), entrelaça a investigação final sobre as narrativas do presente. O terceiro bloco ourela a educação na construção do futuro. O estudante de Ciências Sociais e YouTuber Thiago Torres (FFLCH/USP), mais conhecido como o Chavoso da USP, discorre sobre a dita universalidade do acesso ao ensino público superior. A educadora social Bel Mayer (IBEAC) relata o trabalho desenvolvido pelo seu projeto e evidencia o papel fundamental da leitura. A representatividade e suas (in)visibilidades chuleia o quarto e último bloco. Prof. Alexsandro de Sousa e Silva (FFLCH/USP), doutorando em História, faz um breve panorama no audiovisual brasileiro. A plataforma Lista Preta conversa sobre a referência preta na cultura pop. Em arremate, a filha das travas e obra das trevas, Linn da Quebrada, que é cantora, atriz, apresentadora e performer, reflete sobre novas formas de ligação, lirismo e libertação através de novas e velhas linguagens, línguas e literaturas.
Como diz a música, “é preciso estar atento e forte”, principalmente em momentos tão delicados no qual estamos vivendo. Esse esforço de produzir críticas e possíveis dias melhores, portanto, fazem-se inteiramente legítimos e necessários.
Boa leitura.
Lucas Fernandes e Rafael Pedro