A História fornece registros variados de epidemias que assolaram diferentes locais e povos no Brasil e no mundo. Com a recente disseminação do novo coronavírus (Covid-19), a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) seleciona de seu acervo digital uma série de documentos que descrevem algumas das mais graves epidemias que já foram registradas nas Américas e em Portugal. Além disso, também é apresentado um levantamento de livros sobre saúde e medicina. A intenção é que produções pretéritas possam contribuir para reflexões sobre o momento atual.

A modernização da cidade do Rio de Janeiro, no período denominado Belle Époque, é um processo dissonante. A imagem da ampla Avenida Central - uma tentativa de alcançar o padrão urbanístico europeu, principalmente o parisiense - nos leva a pensar que a iniciativa foi exitosa. Isso, todavia, não apaga o fato de que essas mudanças se processaram de forma violenta, atingindo sobretudo as camadas mais populares. A remodelação teria ainda como agravantes as epidemias. Febre amarela e varíola forçaram a tomada de medidas drásticas pelo poder político da época, inflamando os populares. O desconcerto, observado pelo jornalista e escritor carioca João do Rio, toma forma na narrativa “A peste”, presente na coletânea Dentro da Noite, de 1910, disponível na BBM Digital.

João do rio

A modernização do Rio: choques e contradições

Enquanto a cidade do Rio de Janeiro defrontava-se com um ideal de modernização, as epidemias chegavam. A febre amarela era a principal causa de mortes na cidade nos primeiros anos do século XX. Em 1902 foram registradas quase mil mortes devido à doença. Transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, perdurou até 1907, quando perdeu força devido aos esforços de Oswaldo Cruz, sanitarista e diretor geral de Saúde Pública, para combater os vetores de transmissão. Concomitantemente, a varíola foi motivo de outras milhares de mortes. A medida tomada por Cruz para o combate da epidemia foi a obrigatoriedade da vacina, tendo como objetivo atingir o maior número possível de habitantes. Encolerizados pela imprensa e pelos opositores políticos, os populares insurgiram-se contra a lei obrigatória, no episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina. A insatisfação foi o estopim para a reação violenta, com a ocorrência de frequentes confrontos entre a polícia e os manifestantes.

Abrangendo personagens que vão de dândis a populares, a coletânea “Dentro da noite” de João do Rio é uma exposição desse Rio de Janeiro maculado. Os contos tentam decifrar a metrópole que tomava forma no início do século XX. Apresentam ao leitor um mosaico da burguesia que frequentava os cafés, mas sem deixar de lançar vista ao submundo carioca. O movimento que acompanhamos vai do encantamento com a aparição dos cinematógrafos à hediondez da política do “Bota-Abaixo”, como ficou conhecido o processo executado pelo prefeito do Rio de Janeiro Pereira Passos. Constitui-se de intervenções urbanas em que foram desapropriados e demolidos vários cortiços pela cidade.

dentro da noite

Capa da primeira edição de Dentro da Noite

Lançando mão de recursos estilísticos como o paradoxo e a ironia, João do Rio escreveu textos situados no limite entre jornalismo e literatura; sua prosa tem a marca do entusiasmo em retratar as questões sociais e humanas da vida urbana da capital da República.

Uma cidade desfeita em pus

A varíola é tema para o conto “A peste”. Dono de um olhar arguto em torno da modernização, João do Rio traz aqui imagens acerca do horror de uma metrópole tomada pela purulência do contágio. Maximiza as sensações em um relato sinestésico narrado em primeira pessoa, cujo personagem principal tenciona encontrar um amigo que adoeceu. Percorre as ruas e encontra o vazio; constata que as fileiras de indivíduos que tomavam as calçadas estão nos leitos dos hospitais. Reencontra o amigo desfigurado pelas ‘bexigas’: um reflexo do que a epidemia causou à sociedade carioca da época.

“Faço um esforço, salto. E vou. Vou devagar, vou não querendo ir. A impressão de fim, de extinção violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage inglês aviltado por usinas de porcelana, é bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Desço a rua atordoado, com um zumbido nos ouvidos. O mar é um vasto coalho de putrefações, de lodo que se bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morta. O chão está todo sujo, e passam carroças da Assistência, carroças que vêm de lá, que para lá vão. Quase não há rumor. É como se os transeuntes trouxessem rama de algodão nos pés. Só as carroças fazem barulho. E quando param — como elas param! — é o pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a cova…”

Esse conto e tantos outros textos que compõem a obra de João do Rio são um registro a quente das contradições envolvidas em processos de modernização, nos quais melhorias nas condições de vida são implementadas muitas vezes às custas do sofrimento e morte de uma parcela da população, sobretudo as mais pobres.

Além da coletânea Dentro da noite, da qual o conto “A peste” faz parte, há várias outras obras de João do Rio disponíveis na BBM Digital, como: A Bela Madame Vargas O bebê de tarlatana rosa, A correspondência de uma estação de cura, As religiões no Rio Cinematographo e Vida vertiginosa.

Este texto também está disponível no blog da BBM, acesse:

https://blog.bbm.usp.br/2020/epidemias-do-passado-a-variola-pela-otica-do-cronista-joao-do-rio/

Guilherme Rabelo Fernandes é graduando em Letras pela FFLCH-USP