Sagarana

Cursinho da FFLCH

(Ariel Engel Pesso, Hélio Fernandes Soares, Júlia Vicari e Thomas Dreux)

Sagarana


Sagarana (1946) é o primeiro livro publicado por João Guimarães Rosa (1908-1967), um dos maiores escritores da literatura brasileira. O pano de fundo em que a obra foi publicada é, no mínimo, curioso.

Em 1938, Rosa participou do concurso “Humberto de Campos” realizado pela Livraria José Olympio. Sob o pseudônimo de Viator (“viajante” ou “caminhante”, em latim), ele inscreveu-se com uma primeira versão da obra, intitulada Contos. Contudo, o vencedor do concurso foi Luís Jardim, à época já bastante conhecido, com o romance Maria Perigosa. Viator (Rosa) perdeu por um voto e ficou em segundo lugar.

É curioso notar que compunham o júri do concurso Marques Rebelo, Prudente de Morais Neto, Dias da Costa, Peregrino Júnior e Graciliano Ramos. Este último já havia publicado os romances Caetés (1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e no mesmo ano de 1938 publicou sua obra-prima, Vidas Secas. Em uma crônica publicada em 1946 e depois recolhida no livro póstumo Linhas Tortas (1962), Graciliano conta um pouco dos bastidores do concurso e afirma que “a arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de caboclo, uma conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior” (“Conversa de bastidores”, p. 355).

Feitas algumas modificações em relação à obra inscrita no concurso de 1938, como a supressão de alguns contos e a reescrita de outros, ela foi publicada em 1946 com o título de Sagarana. Este título é um hibridismo entre saga (radical de origem germânica que designa “lenda” ou “canto heróico”) e rana (sufixo de origem tupi que significa “parecido com”, “semelhante a”).

Composto por nove contos e novelas regionalistas (“O Burrinho Pedrês”, “A volta do marido pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha Gente”, “São Marcos”, “Corpo Fechado”, “Conversa de Bois”, “A hora e vez de Augusto Matraga”), Sagarana retrata a vida sertaneja no interior de Minas Gerais. Justamente por dar voz ao sertanejo, Rosa conjuga elementos como musicalidade, neologismos e fábulas, o que também permitiu, nas palavras de Alfredo Bosi, que ele ultrapassasse a fronteira que dividia a lírica e a narrativa. A seguir destacamos dois contos, entre os que compõem a coletânea Sagarana.

“Duelo” é um conto em que se destacam algumas características marcantes das interações humanas no mundo do sertão. A narrativa se desenrola em torno do jagunço Turíbio Todo, centrando-se no tema da vingança. Logo no início do conto, Turíbio flagra sua mulher, dona Silivana, em relação adúltera com o ex-militar Cassiano Gomes. Ao se vingar de Cassiano, porém, Turíbio alveja, por engano, Levindo Gomes, irmão de Cassiano. Este último sai à caça de Turíbio – e o conto se desenrola com essas duas personagens alternando-se no papel de caça e caçador, sempre em meio à paisagem do sertão, tematizada a todo momento pela sofisticada prosa rosiana. Cassiano acaba por falecer sem conseguir vingar o irmão, mas, ao final, Túribio Todo é surpreendido por Vinte-e-um, compadre do falecido, que o executa a tiros de garrucha. Já o conto “O Burrinho Pedrês” é a história do burro Sete-de-Ouros que, já idoso e tendo sido útil vários donos, tem a má-sorte de ser avistado pelo Major Saulo, que o escala para ajudar numa travessia de gado. A narrativa chama a atenção pelas descrições criativas e precisas, assim como pela destreza e cuidado com que Guimarães Rosa dá vida aos animais que compõem a trama, em particular o burrinho protagonista. O crítico Alfredo Bosi (1994, p. 430) destaca um trecho deste conto como exemplo da maneira como Guimarães Rosa mergulha na musicalidade da fala sertaneja, fixando-a por meio de um fraseio no qual soam cadências populares e medievais:

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...

“Um boi preto, um boi pintado,

cada um tem sua cor.

Cada coração um jeito

de mostrar o seu amor.”

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...

As aliterações, células rítmicas, onomatopeias, rimas internas fazem parte dos recursos utilizados por Rosa não só em Sagarana, mas em sua linguagem de forma geral. Nesse sentido, prosa rosiana deriva de uma alteração, com relação à prosa literária tradicional, na forma de enfrentar a palavra. Em consonância com as ideias contemporâneas sobre a natureza da linguagem, o escritor mineiro acompanha mestres da prosa moderna, como James Joyce e Jorge Luis Borges, na convicção de que a palavra é mais do que seu significado. Para esses escritores, nas palavras de Bosi (1994, p. 430), o signo é, não só referente semântico, mas também portador de sons e de formas, que desvendam fenomenicamente a relação entre significante e significado.


Referências bibliográficas:

BOSI, Alfredo. “História concisa da literatura brasileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1994..

NAVARRO, Eduardo de Almeida. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2013.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, em especial “Prêmios” (1939) (pp. 283-286), “Um livro inédito” (1939) (pp. 215-217) e “Conversa de bastidores” (1946) (pp. 350-355).