Sucesso modernista será cobrado pela primeira vez na Fuvest

Obra de Ruth Guimarães, Água Funda, fez grande sucesso em seu lançamento e, após período esquecido, está agora na lista de leituras obrigatórias do vestibular da USP

Publicado em 29/07/2024

Por Franklin Cordeiro Pontes

Mulher negra e caipira, Ruth Guimarães, em 1946, publicou o romance Água Funda, livro que, pela primeira vez, será cobrado como leitura obrigatória do vestibular da Fuvest. A obra fez grande sucesso de público e crítica, e chamou atenção pelo estilo que imitava o modo de falar do povo caipira, mas sem recorrer a estereótipos comuns da época. Mesmo assim, autora e livro acabaram caindo no esquecimento. No entanto, pela ação social do movimento negro, ambos foram redescobertos e passaram a receber o devido reconhecimento literário e intelectual.

Em maio deste ano, pelo BBM no Vestibular, projeto da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP que visa, através de aulas sobre as obras cobradas no vestibular da Fuvest, realizar a integração entre os espaços da universidade com a população em geral, promoveu, uma aula sobre Água Funda com a doutora em Literatura Brasileira Marise Hansen, no Auditório István Jancsó. A aula pode ser assistida no canal da BBM no YouTube BBM no Vestibular 2024 - Água Funda - Ruth Guimarães, com Marise Hansen

Do nascimento à escrita de Água Funda

Ruth nasceu em Cachoeira Paulista, interior de São Paulo, em 13 de junho de 1920, dia de Santo Antônio, um dos santos católicos celebrados nas festividades juninas. Num ambiente caipira, cresceu ouvindo seus causos, suas superstições e lendas. E, desde cedo, começou a produzir literatura, tendo seus primeiros poemas publicados nos jornais locais. Depois, mudando-se para a capital paulista, entre trabalho como datilógrafa e pesquisadora independente, começou a frequentar a roda da intelectualidade de São Paulo que se reunia na antiga Farmácia Baruel, localizada nas proximidades da Praça da Sé, centro da cidade.

Nesse local, conheceu, entre vários intelectuais, Edgard Cavalheiro, Fernando Góes, Rossine Camargo Guarnieri, Amadeu de Queiroz e Mário de Andrade. Joaquim Maria Botelho, filho de Ruth Guimarães, jornalista, escritor, tradutor, em entrevista recentemente realizada pela equipe da Biblioteca Brasiliana a respeito da trajetória e recepção da obra de sua mãe, assim comenta sobre a participação dela nas reuniões da Baruel:

“Minha mãe foi a primeira mulher negra a frequentar um núcleo de intelectuais no centro de São Paulo [...] formado por homens brancos e ricos. E ela foi, de certa forma, abençoada, aplaudida, autorizada por esses homens. O que eu quero dizer é [que] a década de 1940 era uma época em que a gente saia há pouco tempo do período da escravidão (algo que ainda a gente não superou até o momento), mas que apesar da negritude, apesar de ser caipira, apesar de ser pobre e apesar de ser mulher, ela fez sucesso, se destacou pela qualidade de seu texto e pela profundidade que ela alcançou no tratamento das coisas brasileiras”.

Joaquim Maria Botelho

Joaquim Maria Botelho, filho de Ruth Guimarães, jornalista, escritor e tradutor - foto reprodução de vídeo: Feliza Santos/BBM-USP

Com o conhecimento que temos hoje sobre as questões de gênero e raça, que estruturam as relações sociais no Brasil, torna-se um pouco insólito que uma mulher jovem, negra, participe de uma roda de intelectuais masculina, branca e burguesa. Mas, como a exceção que comprova a regra, Ruth Guimarães não apenas foi assídua aos encontros, como também foi responsável pela produção da obra que é, ao mesmo tempo, fruto da época e das discussões que aconteciam na farmácia. Água Funda, romance de 1946, é, em parte, foi resultado de uma provocação ocorrida nas reuniões da Baruel.

Na mesma entrevista citada acima, Botelho conta que Amadeu de Queiroz, dono da farmácia e o grande promotor dos encontros, provocou a todos os estudantes sobre a capacidade deles produzirem obras literárias. Ruth, que já tinha boa parte da obra produzida, disse: “pois eu já tenho um romance pronto!”. Amadeu gostou da atitude e replicou “pois então, onde está?”. No entanto, ainda faltavam alguns retoques ao seu romance, mas que logo depois foram feitos por Ruth e enviado ao provocador. Assim que Queirós terminou de ler a obra, ele a apresentou aos representantes da Livraria e Editora Globo em São Paulo, para que se publicasse Água Funda.

A obra foi um sucesso de público e crítica, tornando-a a primeira escritora negra de projeção nacional. Note-se que a obra foi publicada no mesmo ano de Sagarana, coletânea de contos de João Guimarães Rosa e de lugar mais que estabelecido entre nossos clássicos. Também, perceba-se que a publicação ocorreu pela mesma editora que publicava Érico Veríssimo, um dos autores que na época mais exportava literatura brasileira.

Aluna da USP, professora e folclorista

Água Funda ainda permitiu que Ruth fosse convidada a ser aluna da jovem Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP — atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) —, formando-se em Letras Clássicas, com especialidade em Grego e Latim, em 1953. Esta formação a permitiu traduzir diretamente do latim O Asno de Ouro, de Apuleio, único romance da antiguidade clássica a resistir ao tempo, e que foi reconhecida como a melhor tradução da obra clássica para o português. Além de tradutora, pelo ambiente universitário ser hegemonicamente francófono, Ruth se tornou fluente em francês, traduzindo Balzac, Alexandre Dumas Filho, Daudet e, indiretamente, Dostoiévski. No que se refere a este escritor russo, Ruth foi uma das principais divulgadoras de sua literatura no Brasil.

Após se formar, ela continuou pesquisando a literatura oral brasileira, aquela que é compartilhada nas conversas íntimas das fogueiras ou serões familiares. Foi professora de português na rede pública por mais de 30 anos, ao mesmo tempo que recolhia, sempre que possível, versões diferentes de um mesmo causo, de uma lenda, de mais uma do Malazarte ou do próprio demo. Deve-se destacar que Mário de Andrade foi seu orientador na pesquisa que realizava, logo nos primeiros momentos de Baruel, sobre a imagem do demônio na tradição oral brasileira, que viria a ser publicada sob o título Os Filhos do Medo, em 1950. A obra viria a ser precursora nos estudos demonológicos no Brasil. Também continuou sendo jornalista correspondente de periódicos do Rio de Janeiro e São Paulo, focando-se, principalmente, na crítica literária das obras produzidas na segunda metade do século XX.

Em 2008, aos 88 anos, tomou posse numa cadeira na Academia Paulista de Letras, tendo o reconhecimento institucional de uma vida dedicada ao folclore, à literatura oral, aos caipiras e ao brasileiro. Após seu falecimento, em 2014, criou-se o Instituto Ruth Guimarães, que visa promover estudos sobre as obras e o legado da autora.

Assista, nos vídeos abaixo, a entrevista com Joaquim Maria Botelho, filho de Ruth Guimarães, e a aula sobre o livro Água Funda, do projeto BBM no Vestibular, ministrada no dia 29 de maio, por Marise Hansen, poeta, crítica literária e doutora em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Assista a entrevista com Joaquim Maria Botelho.