Pesquisa realizada no acervo da BBM investigou as relações entre teatro e escravismo no Brasil

O trabalho foi desenvolvido pela pós-doutoranda do Departamento de História da FFLCH-USP Mariana França Soutto Mayor, que também é professora de História do Teatro na Unesp, no âmbito do Programa de Residência em Pesquisa da Biblioteca

Publicado em: 05/02/2024

Texto: Eliete Viana

Teatro São Pedro antigo

Teatro hoje


Há quase 10 anos, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP criou o Programa de Editais de Residência em Pesquisa. Nas 7ª e 8ª edição deste Programa, Mariana França Soutto Mayor participou na modalidade de pós-doutorando, com investigação sobre as relações entre teatro e escravismo no Brasil.

Com o título O Negreiro à frente do teatro: José Bernardino de Sá na direção do Theatro Imperial São Pedro de Alcântara (1845-1851), chamado atualmente de Teatro João Caetano, a pesquisa de Mariana destaca esses anos de administração de Bernardino de Sá – que era português, foi um poderoso contrabandista de africanos no Império e chegou a ser um dos principais acionistas do Banco do Brasil – indagando sobre suas motivações, escolhas artísticas e políticas dentro do teatro, ao mesmo tempo em que procura pensar as tensões da/na cena a partir do repertório representado, críticas de jornal, e do trabalho hierarquizado e racializado dos artistas no teatro. Esta investigação contou com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) de pós doc.

“Na minha pesquisa destaco as atividades de Bernardino de Sá como um dos homens mais poderosos da primeira metade do século XIX no Brasil, dando consequência especificamente para sua atuação no Theatro São Pedro”, afirma Mariana. A pesquisadora conta que desde sua construção, em 1813, a mando de D. João VI, o Theatro S. Pedro de Alcântara foi um espaço privilegiado de sociabilidade da elite e da corte no Rio de Janeiro, recebendo financiamento de grupos acionistas, assim como benesses do estado por meio do sistema de loterias.

“José Bernardino de Sá muito provavelmente entrou para a presidência do Theatro para construir para si uma imagem pública de benfeitor, mecenas “civilizado” e culto, conciliando as atividades teatrais com seus negócios lícitos e ilícitos. Permaneceu na direção da sociedade teatral de 1845 (ano da promulgação da Lei inglesa Bill Aberdeen, que classificou como pirataria o tráfico brasileiro), a meados de 1850 (ano da aprovação da Lei Eusébio de Queirós, que abolia o tráfico transatlântico de escravizados no Brasil) – um período no mínimo contraditório para exposição pública de um traficante do tamanho de Bernardino de Sá. Comparada a direções anteriores, nenhuma outra foi tão atacada quanto a do negreiro, cercada de inúmeras polêmicas, como abuso de poder, corrupção, medidas arbitrárias, sofrendo denúncias de artistas, jornalistas e políticos em periódicos da época”, explica Mariana.

Política da escravidão no Brasil

Segundo a pesquisadora, não é de se espantar a participação de Bernardino de Sá como acionista do Banco do Brasil, assim como diretor da Sociedade do Teatro Imperial, nem como benfeitor da Sociedade Amante da Instrução para "sustentar as orphãas [sic] do collegio desde a sua fundação”. Pesquisas recentes têm discutido o compromisso político assumido pelas classes dirigentes brasileiras na manutenção do escravismo desde a Constituição de 1824, passando pelo não cumprimento da Lei Feijó de 1831 e pelo pacto de silenciamento sobre o contrabando de escravizados durante toda primeira metade do século XIX.

“O historiador Tâmis Parron nomeou esse processo de “política da escravidão no Brasil”. O termo é elucidativo porque abre perspectivas para pensarmos as consequências desse pacto político na vida cultural do país. Lembro que em uma das primeiras reuniões com a minha supervisora, a professora Iris Kantor [do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)], ela indagou que não era um fato surpreendente um negreiro estar a frente de um teatro naquele momento histórico, visto que toda a elite brasileira estava totalmente comprometida com a permanência do escravismo: quem não estava envolvido com o tráfico ilegal?”, ressalta a pesquisadora.

Com a participação no Programa de Editais de Residência em Pesquisa na BBM, Mariana teve acesso à sua coleção com infraestrutura de trabalho e gabinete de estudo. “O acervo da BBM foi fundamental para a pesquisa pela possibilidade de ter acesso a periódicos, relatos de viajantes e livros raros, alguns já digitalizados. Pesquisei fontes do século XIX, mas também obras do século XX que deram embasamento teórico para o trabalho que ainda está em desenvolvimento (meu pós-doc termina em abril de 2025)”, ressalta Mariana.

Cartaz Jornada


Jornada

Durante o período na BBM, como uma das atividades da residência, Mariana também organizou a Jornada Internacional Teatro & Escravismo: Nexos, Elipses e Inadequações, juntamente com a sua supervisora do pós-doutorado, Irís Kantor, contou com apoio da BBM, do Programa de Pós-graduação em História e do Centro Universitário Maria Antonia (MariAntonia).

O evento foi realizado nos dias 5 e 6 de junho de 2023, no MariAntonia, e reuniu especialistas para debater as relações entre as formas teatrais e as estruturas sociais na experiência estética e política brasileira entre os séculos XVI e XIX. Além de organizar, Mariana participou de uma mesa sobre as relações entre Mecenato e Escravismo apresentando a comunicação O Negreiro à frente do teatro: José Bernardino de Sá na direção do Theatro Imperial São Pedro de Alcântara.

A Jornada foi gravada e seu conteúdo está disponibilizado no canal da História da FFLCH-USP no Youtube. As comunicações apresentadas serão reelaboradas por seus autores para uma publicação especial (como Boletim ou livro), que tem previsão de ser lançada no final de 2024, com apoio da BBM.

Inspiração

O interesse em pesquisar as relações entre teatro e escravismo no Brasil surgiu como consequência da tese de doutorado da pesquisadora, intitulada Espetáculo disforme: o trabalho teatral da Casa da Ópera de Vila Rica (1769-1793), orientada pelo professor Sérgio de Carvalho, da Escola de Comunicações e Artes (ECA).

Entre estudos sobre os motivos de sua construção, modos de organização, repertório, temporadas, espetáculos e público, Mariana se deparou com o fato de que a maior parte dos trabalhadores do teatro eram negros e mestiços, alguns inclusive em condições próximas à escravidão. O assunto já havia sido abordado antes, mas ao longo de seu trabalho ela pode aprofundar a discussão.

Após o doutorado, interessada nos estudos do século XIX, Mariana leu o texto Vida privada e ordem privada no Brasil, de Luiz Felipe de Alencastro, onde o professor cita José Bernardino de Sá como “grande negreiro e amante do bel canto italiano”. “Achei curiosíssimo o fato - e de certa maneira, uma imagem reveladora da elite escravista brasileira: um negreiro presidente do teatro mais importante do Brasil império nos anos finais de intenso contrabando ilegal de escravizados. Foi daí que comecei a esboçar o projeto de pós-doc, como uma espécie de continuação da minha tese, mas a partir de uma figura de mando num período chave da história brasileira”.

Prorrogação do pós-doutorado

Mariana está em contato com o professor Johan Verberckmoes da KU Leuven, na Bélgica, para tentar uma bolsa de estudos FWO Flandres Grant. O intuito da viagem é participar do grupo de estudos em História Moderna, coordenado por Verberckmoes e visitar bibliotecas e coleções especiais. A previsão é ir como pesquisadora visitante, em março de 2025.

Segundo a pesquisadora, na carta convite, o professor destacou o estágio na BBM e inclusive justificou a ida como forma de estreitar vínculos entre a instituição belga e a Biblioteca.

O seu pós-doutoramento no Departamento de História USP foi prorrogado até o 1º semestre de 2025, prevendo a realização da viagem para a Bélgica, a organização da publicação em livro ou Boletim especial a partir de textos apresentados na Jornada Internacional Teatro e Escravismo e o oferecimento de uma disciplina no segundo semestre de 2024, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Social, que tratará das formas teatrais setecentistas e oitocentistas no Brasil.

Programa de Residência em Pesquisa

As atividades da 9ª edição do edital que está em vigor começaram em setembro de 2023. A BBM oferece ao pesquisador residente acesso à sua coleção com infraestrutura de trabalho e gabinete de estudo. Este programa possibilita que pesquisadores visitantes nacionais e estrangeiros desenvolvam projetos relacionados ao acervo da Biblioteca.

O objetivo do programa é fomentar as ações de pesquisa centradas no acervo e no arquivo da BBM, o aprofundamento do conhecimento científico, a formação dos envolvidos e a transmissão do conhecimento gerado, no âmbito da cultura e da extensão universitária.

Podem-se inscrever pesquisadores brasileiros e estrangeiros, nas categorias sênior, professor licenciado, professor/pesquisador independente ou em disponibilidade parcial para a pesquisa, assim como para mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos e bolsistas de Iniciação Científica, que possuam financiamento próprio e pretendam permanecer de um a seis meses desenvolvendo projetos junto à BBM, que podem ser prorrogados por igual período. Há três modalidades de vinculação ao programa: Residência de Programa de pós-doutorando, doutorando, mestrando e de bolsistas de Iniciação Científica (PUB, PIBIC ou FAPESP); Residência de Programa de Pesquisador; e Residência artística.

Normalmente, o edital contempla cerca de 10 projetos de pesquisa que atendam as finalidades acadêmicas da BBM e contribuam para a disseminação do saber. Os projetos de pesquisa devem apontar como se alinham com o perfil do acervo, por meio de propostas de investigações que explorem sua coleção de fontes primárias e secundárias.

Mariana França Soutto Mayor

Formação

Além de pós-doutoranda do Departamento de História da FFLCH-USP, Mariana é professora assistente de História do Teatro no curso de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Ela é graduada em Artes Cênicas com habilitação em Teoria Teatral (Dramaturgia e Crítica) pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, pela qual também é mestre e doutora em Teoria e Prática do Teatro. Atuou como investigadora na Universidade de Coimbra, em Portugal, com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian (2018-2019). É integrante do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade da USP e, desde 2020, organiza a revista argentina bilingüe Teatro situado: revista de artes cênicas com olhos latino-americanos.