Por Cristina Antunes


De estatura mediana, de musculatura sem relevo, de cor tisnada como um califa dos contos árabes, o caráter dominante de sua fisionomia e do seu talento era uma mistura de bondade e delicadeza fundidas em modéstia que se poderia confundir com a humildade.
(Melo Morais Filho – Artistas do meu tempo)

Há pouco mais de duzentos anos, no dia 2 de dezembro de 1809, nascia no Rio de Janeiro Francisco de Paula Brito, o primeiro editor brasileiro do Brasil Império. Havia apenas um ano que a família real portuguesa se mudara para cá fugindo das tropas de Napoleão.

Ao fazer do Rio de Janeiro a sede do Império português, D. João VI mudou definitivamente o perfil daquela cidade e a história do Brasil. O Rio de Janeiro se tornou a “Corte”, a capital do país que deixava de ser Colônia, e, para garantir a sobrevivência do governo, passou a abrigar vários órgãos administrativos equivalentes aos que existiam em Portugal. Entre eles, estava a Impressão Régia, nossa primeira tipografia, criada para suprir a necessidade de um órgão responsável pela publicação dos documentos oficiais.

A cidade do Rio de Janeiro passou, em curto espaço de tempo, por inúmeras mudanças, crescendo a olhos vistos. No entanto, apesar de todas as transformações, a liberdade de imprensa no Brasil só viria a acontecer em setembro de 1820, quando um decreto, ratificado por D. João VI apenas em 1821, estabeleceu o fim da censura prévia do que se publicava nas colônias portuguesas. Com o fim da censura, a imprensa da época é fortemente vinculada à vida política, com a publicação de inúmeros jornais, panfletos e gazetas, muitos deles de vida efêmera. Aos poucos o Rio de Janeiro se tornou o lugar que abrigava os grandes teatros, as grandes livrarias, os grandes colégios; o lugar para onde eram enviados os filhos das famílias ricas de outras cidades e estados brasileiros. Mas junto com a efervescência da vida cultural e o crescimento urbano, econômico e demográfico da cidade, crescia também o número de escravos provenientes de várias regiões da África e, mais tarde, o número dos que se opunham ao regime escravagista.

Foi nesse ambiente que Paula Brito, um mulato, filho de pais de origem modesta e cuja educação tinha sido da responsabilidade de seu avô (que trabalhava com o famoso escultor Mestre Valentim), começou, aos 15 anos, a aprender o ofício de tipógrafo na Imprensa Nacional. Ao terminar sua aprendizagem, trabalhou na tipografia de René Ogier, passando depois para o Jornal do Comércio, onde foi redator e tradutor.

Paula Brito começou, então, a atuar efetivamente como tipógrafo, jornalista e editor. Em 1831, ano da abdicação de Pedro I, construiu sua tipografia, a Tipografia Fluminense de Brito e Cia., estabelecida no centro da cidade em 1832. É dela que sai, nesse mesmo ano, o primeiro jornal brasileiro dedicado ao público feminino – A Mulher do Simplicio ou A Fluminense Exaltada, que circulou até 1846. Sendo ele próprio mulato e consciente da situação do negro no Brasil, publicou também, a partir de 1833, o jornal O Homem de Cor, que mais tarde passou a ser chamado de O Mulato ou O Homem de Cor, primeiro jornal brasileiro a lutar contra o preconceito racial.

Partidário da monarquia e de José Bonifácio – de quem editou a Defesa do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conselheiro Desembargador José Bonifácio de Andrada e Silva –, se considerarmos as instituições às quais se vinculou durante a vida, podemos perceber que Paula Brito também dirigiu seus interesses para a industrialização e a promoção da cultura no Brasil, e para a abolição da escravidão e eliminação do preconceito de cor no nosso país.

Embora sempre contasse com poucos recursos financeiros e durante toda a sua vida lutasse com dificuldades, o talento de Paula Brito o levou à construção da primeira verdadeira casa editorial do Brasil, que passou a ser a mais destacada de sua época – a Empresa Tipográfica Dous de Dezembro. Esse mulato de origem humilde, que se tornara editor, poeta, contista, jornalista, tradutor e intelectual, soube se cercar e conviver com outros intelectuais, artistas viajantes, poetas, e até o próprio D. Pedro II (Paula Brito foi impressor da casa imperial, referência que aparece na imprenta de alguns livros: “Empresa Tipográfica Dous de Dezembro – de Paula Brito – Impressor da Casa Imperial”).

Entre os anos de 1830 e 1860 publicou quase uma centena de jornais e revistas e cerca de 400 livros e folhetos. Dentre os autores brasileiros publicados por Paula Brito, destacam-se: Joaquim Manoel de Macedo, Casimiro de Abreu, Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, Martins Penna, Machado de Assis, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Domingos Alves Branco Moniz Barreto, Augusto Emílio Zaluar. Foi o editor de uma das primeiras peças de teatro brasileiro, Antônio José ou o poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, em 1839; do que é considerado o primeiro romance brasileiro, O filho do pescador, de Teixeira e Souza, em 1843; e daquela que é tida como a primeira ópera brasileira, a comédia lírica A Noite de São João, de José de Alencar, apresentada sob a regência de Carlos Gomes em 1860. Também é dele a primeira edição de Últimos cantos, de Gonçalves Dias, em 1851; a edição completa, em 2 volumes lançados em 1851, das Mauricianas, do Padre José Maurício Nunes Garcia; e a sexta edição de O Uraguai, de Basílio da Gama, lançada em 1855.

Paula Brito foi ainda poeta e contista. Entre seus contos publicados em jornais, estão “O enjeitado” e “A mãe-irmã” (ambos no Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 1839). Já seus poemas, foram compilados por Moreira de Azevedo, na obra póstuma Poesias de Francisco de Paula Brito, publicada em 1863. Traduziu diversos autores, como Frederic Soilié, Cordelier Delanoue, Pitre Chevalier, Alexandre Dumas, Emile Silvestre, Julis A. David e Cretineau July.

Sabe-se que, na casa de Paula Brito, foi criada, em 1840, uma sociedade literária sem estatutos, onde se reuniam romancistas, poetas, jornalistas, compositores, profissionais liberais, políticos e líderes da sociedade carioca. Essa sociedade, que sobreviveu a Paula Brito, chamava-se Petalógica, palavra derivada de “peta” (e não de “pétala”, como se pensava na época), que significa mentira. Sobre essa sociedade, Machado de Assis escreveu no Diário do Rio de Janeiro de 11 de setembro de 1864: “Cuidavam muitos que, por ser petalógica, a sociedade nada podia empreender que fosse sério: mas enganaram-se”.

Aliás, Machado de Assis começou a trabalhar na tipografia de Paula Brito como revisor e colaborador em 1854, e foi ali que iniciou sua própria carreira literária escrevendo no periódico A Marmota Fluminense (publicado por Paula Brito desde 1847, quando se chamava apenas A Marmota) seu primeiro texto, o poema “Ela”, que saiu publicado no ano de 1855. Os dois primeiros livros de Machado, Queda que as mulheres têm para os tolos (onde aparece como tradutor) e Desencantos, fantasia dramática, também foram publicados por Paula Brito em 1861, no mesmo ano da morte do editor.

Paula Brito morreu no dia 15 de dezembro de 1861 e os jornais da época noticiaram que o seu enterro reuniu um dos maiores grupos de pessoas já vistos na cidade do Rio de Janeiro. Eis, nas palavras do próprio Machado, o que representou para a história da tipografia brasileira a figura de Francisco de Paula Brito: “Paula Brito foi o primeiro editor digno desse nome que houve entre nós”.

Sugestões de leitura:

GONDIN, Eunice. Vida e obra de Paula Brito “Iniciador do movimento editorial no Rio de Janeiro” (1809-1861). Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965

MORAIS FILHO, Melo. Artistas do meu tempo, seguidos de um estudo sobre Laurindo Rabello. Rio de Janeiro: Garnier, 1905.


Cristina Antunes foi curadora da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e administrou a coleção de José e Guita por mais de 30 anos. Faleceu em 2019.