André de Azevedo
Graduando em Letras Português-Inglês USP
Professor de Literatura no Cursinho FGV
A transição do século XIX para o século XX foi a época em que a ciência se constituiu como fonte de conhecimento prestigiada e politicamente poderosa, sendo inclusive usada para ratificar o neocolonialismo, a partir das teorias genéticas que promulgavam a hegemonia europeia em comparação com os habitantes dos outros continentes. Nesse contexto, o Brasil, como um país híbrido desde o início de sua colonização, carregava fortes contradições na sua constituição social. O romance naturalista O Cortiço, de Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913), se insere ao mesmo tempo como apoiador e refutador das teorias em voga na Europa e consequentemente no nosso país.
O escritor maranhense, com sua aptidão para desenhos e caricaturas, atividade que exerceu profissionalmente, pintou personagens, que, embora tidas pelo cânone literário como menos complexas e profundas que as de seu contemporâneo Machado de Assis, primam pela construção de um conjunto rico em força e autenticidade.
No livro O Cortiço, Aluísio Azevedo dialoga com uma série de teorias correntes, em que o autor se colocava numa posição de cientista neutro, construindo também um narrador onisciente e neutro. No entanto, como bem observa Alfredo Bosi (1978, p. 192): “A pretensa neutralidade não chega ao ponto de ocultar o fato de que o autor carrega sempre de tons sombrios o destino das suas criaturas”.
Dentre as principais características do livro está o processo de humanizar o meio (objetos, fenômenos da natureza) e animalizar as pessoas. E o principal objeto a ganhar vida é o próprio cortiço, que se eleva da condição de morada dos personagens para um ser com vida e movimento formando com os moradores uma simbiose orgânica que torna difícil a separação de ambos. E aqui o texto exemplifica esta relação:
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia (Azevedo, 2012, p. 95).
Publicado em 1890, apenas um ano após a Proclamação da República e dois após a Abolição da Escravatura, o texto apresenta como um de seus pontos fundamentais a problemática desta relação escravista na pele de Bertoleza que, apesar de ganhar de João Romão sua carta de alforria, continua trabalhando como escrava para o enriquecimento de seu “libertador”. Assim, o autor tematiza também a ascensão do imigrante português, tido aqui como explorador e sovina, que domina o meio e passa a fazer parte da alta sociedade às custas de Bertoleza, dos moradores do cortiço, dos frequentadores de sua venda e até de furtos e roubos diretos. Nas palavras de Antonio Candido (1993, p. 140), “(…) sempre a pobreza e a privação foram as melhores e mais seguras fontes de riqueza”. Ao confrontar organizações sociais específicas e concepções culturais extrínsecas ao nosso tempo, como por exemplo as teorias deterministas, deve-se, por um lado, evitar o anacronismo simplista e, por outro, abordar criticamente concepções racistas e preconceituosas, evitando deste modo que se tornem comuns e continuem sua propagação. Sobre este aspecto Candido (1993, p. 143-144) é preciso: “Esta Bertoleza, aliás, que era cafuza, serve para surpreendermos o narrador em pleno racismo, corrente no seu tempo com apoio numa pseudo-ciência antropológica que angustiava os intelectuais brasileiros quando pensavam na mestiçagem local. João Romão propõe a Bertoleza morarem juntos, e ela aceita, feliz, ‘porque, como toda cafuza (…) não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua’”.
Em outra dimensão da obra, as novas abordagens estéticas se fazem presentes. As descrições da natureza, que no Romantismo eram mais longas e quandiloquentes, aqui adquirem um tom mais objetivo e constitutivo do meio e dos personagens que o compõem. Exalta-se, por exemplo, a influência e majestade do sol e da montanha de minério. O meio não é apenas um pano de fundo exótico e contemplativo, mas outro personagem ativo.
AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978.
CANDIDO, Antonio. De Cortiço a Cortiço. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
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