Amândio Reis usou como referência três textos do escritor brasileiro: “Filosofia de um Par de Botas” (O Cruzeiro, 23 abr. 1878), ”História Comum” (A Estação, 15 abr. 1883) e “Um Apólogo” (Gazeta de Notícias, 1 mar. 1885 [“A Agulha e a Linha”]; Várias Histórias, 1896)

Publicado: 02/09/2025

Por Eliete Viana


No dia 27 de agosto, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP recebeu a palestra Um era eu: coisas que falam em Machado de Assis, do professor Amândio Reis, da Universidade de Lisboa, em Portugal. Realizada na Sala do Conselho, a atividade teve a presença de pesquisadores residentes, bolsistas, estagiários da Biblioteca, assim como interessados em geral.

Palestra Um era eu: coisas que falam em Machado de Assis

Professor Amândio Reis dá palestra na BMM / Foto: Isabela Gotsfritz BBM-USP

De acordo com a ementa da palestra, o intuito ao abordar este tema, por um lado, é compreender estas “coisas que falam” a partir de certa tradição literária, baseada na personificação, ou na prosopopeia, com desenvolvimentos específicos nos séculos XVIII e XIX. E, por outro lado, reconhecendo estes objetos enquanto emblemas da cultura material oitocentista e radicais figuras de linguagem, é dar especial atenção ao modo como eles podem também representar uma poética da prosa machadiana, virada para os seus próprios motivos e o seu contexto, mas em diálogo com o mundo e a literatura.

Em sua fala, Reis comentou sobre histórias de Machado de Assis protagonizadas e narradas por objetos: botas, alfinetes, linhas e agulhas. Ao dar voz a objetos inanimados, Machado desmistifica as convenções sociais e expõe o comportamento humano, muitas vezes mesquinho e interesseiro. Para isso, usou três textos:

O primeiro “Filosofia de um Par de Botas” (O Cruzeiro, 23 abr. 1878) narra a conversa entre duas botas, que se tornam um veículo para o autor explorar, através da ironia, a fugacidade da vida, a vaidade humana, as injustiças sociais e a superficialidade das aparências, mostrando como os objetos podem ser um reflexo dos valores da sociedade.

O segundo ”História Comum” (A Estação, 15 abr. 1883) conta, através da perspectiva de um alfinete, a história de uma ascensão social momentânea e a subsequente queda sem causa aparente, exemplificando a natureza efêmera da sorte e a influência do acaso, na qual a história é comum não apenas pela simplicidade do objeto, mas pela repetição de situações semelhantes na vida.

E no terceiro texto “Um Apólogo” (Gazeta de Notícias, 1 mar. 1885 [“A Agulha e a Linha”]; Várias Histórias, 1896) tem a história de orgulho e vaidade que levam uma agulha e um novelo de linha a uma discussão acalorada em que ambas procuram provar a superioridade em relação à outra.

Durante sua apresentação, o professor da Universidade de Lisboa disse que “é importante separar o sentido conotativo do literal” e destacou que “há muita atualidade nos textos citados”. Além disso, ressaltou que Machado de Assis tinha um gosto de falar destas “coisas tolas”.

Comentários

Entre as perguntas e os comentários do público presente, o pesquisador residente da BBM Nelson Aprobato Filho — que estuda representações iconográficas e referências sonoras sobre animais silvestres brasileiros em relatos de viagem do acervo da BBM — perguntou a opinião de Reis sobre "agências das coisas" e se ele repara alguma relação no texto de Machado de Assis entre os objetos e os animais, ao que o palestrante respondeu que a gente coisifica os animais também.

O diretor da BBM, Alexandre Macchione Saes — que também é professor de História Econômica da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP —, chamou atenção para o fato de Machado de Assis ter morrido, em 1908, poucos anos depois da proclamação da República, em 1889, e não ter convivido com muitas mudanças na sociedade brasileira.

Já o vice-diretor da BBM, Hélio de Seixas Guimarães — professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e que estuda Machado de Assis em suas pesquisas —, declarou que “quando Machado coloca algum objeto em cena tem uma densidade de valores sobre os objetos. (...) Mesmo quando os objetos não estão "animados", há uma força neles”.

Guimarães finalizou a palestra agradecendo a presença de Reis como pesquisador na Biblioteca e ressaltando que “a pesquisa é muito rica, podendo virar uma tese sobre todos os objetos”.

Palestra Um era eu: coisas que falam em Machado de Assis

Palestra Um era eu: coisas que falam em Machado de Assis / Foto: Isabela Gotsfritz BBM-USP

Programa Brasilianistas na BBM

Amândio Reis é docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sendo, pela mesma instituição, licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos, mestre em Estudos Românicos e doutor em Estudos Comparatistas. Seus estudos têm como foco principal as formas breves na literatura portuguesa e na literatura brasileira entre os séculos XIX e XX.

A atividade marcou a participação de Reis como pesquisador do Programa Brasilianistas na BBM, durante o mês de agosto, no âmbito do qual ele desenvolveu o projeto de pesquisa Entrelinhas e entre laudas: uma investigação de contos e crônicas de Machado de Assis a partir do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

O professor escreveu um breve relato sobre como ficou sabendo do Programa na BBM, as suas motivações para participar e como foi este período de um mês na Biblioteca:

“Outros colegas já me tinham chamado a atenção para as atividades da Biblioteca, mas foi através do boletim da American Portuguese Studies Association que tomei conhecimento da Chamada 2024/2025 do Programa Brasilianistas na BBM. Apresentei um projeto com base no meu trabalho de edição em Portugal dos Contos Completos de Machado de Assis (E-Primatur, 2024-2027), que reúne, em cronologia inversa, os contos publicados em coletâneas, mas, também, todos os que o autor deixou dispersos em periódicos ao longo de cinco décadas. Estando agora em preparação o 3.º e o 4.º volumes, que avançam para épocas mais recuadas — levantando novas dúvidas de classificação, atribuição e deturpação de originais —, o projeto beneficiou muito do contato mais próximo com algumas das fontes que este período de um mês na Biblioteca permitiu. Para além das fontes primárias, como periódicos e primeiras edições de Machado, encontram-se no acervo da Biblioteca diversas obras de bibliografia crítica e histórica que se revelaram de grande importância, incluindo publicações da própria BBM, entre as quais se destaca, por exemplo, Primeiras Edições BBM: Machado de Assis (2022, org. Hélio de Seixas Guimarães, Ieda Lebensztayn e Luciana Antonini Schoeps). A qualidade da informação e a copiosa reprodução de documentos originais fazem deste catálogo um valioso instrumento crítico e, ao mesmo tempo, uma leitura fascinante. Gostaria ainda de mencionar o espaço de trabalho na Biblioteca e a troca pessoal com colegas e estudantes machadianos, brasilianistas, e não só, como outros aspectos que, de maneira mais indireta, mas não menos relevante, contribuíram muito para enriquecer este tempo de pesquisa e trabalho na BBM”.