Por Guilherme Rabelo Fernandes

Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu em Lisboa, Portugal. Órfão de pai com um ano e de mãe aos dez, Pena foi enviado por seus tutores para o curso de Comércio, que completou em 1835. Porém foi nos estudos na Academia de Belas Artes que encontrou uma formação diversa e variada, onde estudou pintura e arquitetura, assim como línguas e literatura. O aprendizado de várias línguas possibilitou que Pena ingressasse na carreira diplomática; já o interesse pelas artes e literatura foram decisivos para o seu olhar apurado para o humano e suas contradições, que soube explorar na construção dos tipos que aparecem em suas comédias.

Escrita em 1833, O juiz de paz da roça, comédia em um ato, foi levada aos palcos em 1838, sem menção à autoria - conta-se que Pena não queria que o fato atrapalhasse sua carreira diplomática. A edição da peça disponível na BBM Digital é de 1871, o vigésimo nono volume de uma coleção chamada Theatro Moderno Luso Brasileiro - Coleção de comédias, dramas e cenas cômicas. Judas em sábado de aleluia (1844), outra comédia de Pena, também recebeu um volume na coleção. A edição foi da Livraria de Cruz Coutinho, do Rio de Janeiro.

O enredo da peça é simples: Manuel João, um lavrador, e Maria Rosa vivem em situação de penúria no campo, juntando as economias para casar a filha, Aninha, e comprar uma escrava para ela. Aninha, por sua vez, planeja se casar com José, com quem vive um caso de amor escondido, e fugir da vida no campo. Até que Manuel João é intimado pelo Juiz de paz a levar um prisioneiro para a Corte. O prisioneiro, como descobrimos posteriormente, é José.

Embora exista essa reviravolta, não é o enredo o que mais salta aos olhos ao lermos a peça, mas as personagens. O Juiz de paz, figura de maior autoridade na peça, é a personagem que melhor exemplifica a crítica social que Pena alcançou em suas comédias de costumes. Nas cenas em que aparece, observamos que por meio de suas falas e ações há uma crítica à atuação da Justiça no interior do Brasil. Há o abuso de poder, em um ato autoritário:

JUIZ - Não posso deferir por estar muito atravancado com um roçado; portanto, requeira ao suplente, que é o meu compadre Pantaleão.

MANUEL ANDRÉ - Mas, Sr. juiz, ele também está ocupado com uma plantação.

JUIZ - Você replica? Olhe que o mando para a cadeia.

MANUEL ANDRÉ - Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda.

JUIZ - A Constituição! Está bem! Eu, o juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem. (Cena IX, Ato I)

O mesmo magistrado, tão autoritário, reconhece ser pouco qualificado para o cargo que ocupa:

ESCRIVÃO - Vossa Senhoria não se envergonha sendo um juiz de paz?

JUIZ - Envergonhar-me de quê? O senhor ainda está muito de cor. Aqui para nós, que ninguém nos ouve: quantos juízes de direito há, por estas comarcas, que não sabem aonde têm sua mão direita, quanto mais juízes de paz! E, além disso, cada um faz o que sabe. (Cena XVII, Ato I)

E assume o tom amistoso no final da peça. Resolvidas as confusões, se despe de suas obrigações e de qualquer traço de autoritarismo. Age como um mestre de cerimônias:

JUIZ - Sr. escrivão, faça o favor de ir buscar a viola. (Sai o Escrivão.) Não façam cerimônia; suponham que estão em suas casas; haja liberdade. Esta casa não é agora do juiz de paz - é de João Rodrigues. [...] (Cena XIX, Ato I)

É essa a personagem que mais expressa contradições. O uso desse artifício é fundamental para textos teatrais, ainda mais para os cômicos. Retratar um magistrado dessa forma abarca a crítica, pois mostra como a Justiça pode agir de forma autoritária. E esse mesmo retrato provoca o riso de quem vê, que se surpreende e se espanta ao descobrir que o juiz que faz ameaças arbitrárias é o mesmo que vai agir como um mestre de cerimônias, pedir a viola e dançar com as demais personagens.

Se por um lado Martins Pena possuía o claro objetivo de criticar os costumes locais, por outro, queria divertir o público. E com textos que transitam entre o riso e a crítica social, Martins Pena é lembrado como o maior comediógrafo do período romântico e introdutor da comédia de costumes no Teatro brasileiro.

Sugestão de leitura:

FARIA, José Roberto (dir). História do Teatro brasileiro, Volume 1: das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX. São Paulo (SP): Serviço Social do Comércio; Perspectiva, 2012. p. 119 - 130.


Guilherme Rabelo Fernandes é estagiário da BBM e graduando em Letras pela FFLCH-USP.